Para falar com os mortos... prima 4
A televisão faz rir, chorar, dormir, acordar, entreter, educar, informar, faz de Santa Casa, recolhe e dá euros, paga contas do gás e da electricidade a espectadores, homenageia, anuncia, denuncia, promove, vende, dá prémios, aborrece, deseduca, desinforma, reúne pessoas desavindas ou sem rasto, acalma, enerva, faz obras em quartos ou casas, procura criminosos, paga operações estéticas e dentaduras, procura dadores compatíveis _ e põe os mortos a falar com os vivos.
Bem, mortos, mortos, não estão. Júlia Pinheiro, a apresentadora de Depois da Vida, fala sempre dos mortos como de pessoas que "estão noutro plano", assim como que noutra frequência hertziana (TVI sextas).
Os vivos têm o desejo intenso de recuperar os seus mortos. Perigosa tarefa, como Orfeu descobriu à sua custa: olhou para o retrovisor e perdeu Eurídice para sempre. O mito diz que o melhor é não tentarmos, mas os vivos querem pelo menos falar com os mortos, apesar de estes não terem por hábito responder. Excepto se houver medium. E qual melhor do que a televisão para falar?
Na ficção, há livros, filmes e séries de TV em barda sublimando a vontade de ouvir os mortos. Numa série de TV, os mortos recorrem a uma mulher para dar um último recado aos vivos. Não do tipo "deixei a panela ao lume", mas mais importantes, do género "foi com o veneno dos escaravelhos".
Milhões de mortos voltam em imagens digitais, sobreposições, maquilhados. Os bons mortos querem resolver problemas; os maus não nos deixam em paz, mas há voluntários, polícias do outro mundo, como na série em que dois irmãos arrasam espíritos malignos. E há tantos vampiros, todos vivos, como o Elvis.
Na Tv de realidade, a sublimação ficcional desaparece. A comunicação dos mortos vira talk-show. É tudo conversa, não dá para efeitos especiais (a televisão ainda não faz milagres). Vem uma medium TVI e diz: o morto está a dizer isto e aquilo, está tudo bem, não se preocupem, beijinhos, até à próxima. "É exactamente como falar ao telefone", disse a medium na primeira edição. Vivos falam com um vivo que diz que são os mortos a falar. Uma medium adicional, a Pinheiro, traduz o inglês da outra medium.
À parte mexer com a morte. Depois da Vida não se distingue do viver habitualmente da TV comercial. Há um estudiozinho. Uma apresentadora conhecida. Um balcãozinho feito de andaimes da construção civil com um público propenso a espiritualidades mediáticas, mediúnicas. Há conhecidos que se prestam a ver devassada, não a sua vida, mas a dos seus mortos. E há a medium que fala com tudo o que é morto. Metem-lhe uma pessoa à frente. Ela sintoniza, como a pitonisa, e desbobina coisas do outro mundo. Sempre coisas boas. Anne Germain só "traz o amor dos espíritos".
Os vivos ficam contentes. Interpretam as palavras de Germain como uma espécie de SMS dos seus mortos. Se calhar já não acreditam em Deus, nos santos, nos padres, na Igreja. Mas acreditam que Germain chega de avião lá da terra dela, lhes tira a pinta e invoca o "amor dos espíritos", dos ursos de peluche, do avô e da filha que já "foram para outro plano". Germain grava uns programas de enfiadada, mete-se no avião e vai falar com os mortos de outra freguesia. Traz o amor dos espíritos, leva o cheque dos crédulos.
A televisão tem esta arte de transformar em barraca de feira tudo aquilo em que toca, incluindo a espiritualidade. Ao contrário de Teresa Guilherme, que realmente acreditava naquelas palhaçadas (Programa do Além, SIC, 1997), Júlia Pinheiro não mostra verosimilhança. Mesmo assim, este programa da TVI terá um lugar muito especial na História da Televisão em Portugal, porque, pela primeira vez em décadas, a Pinheiro não grita. Como se estivesse na casa mortuária, graças à gente do "outro plano" ela fala baixinho: Yes, She can!
Os mortos têm muita dificuldade em expressar-se, mas Germain tem muita lábia. Fala por eles. Diz banalidades em voz doce e anda ali às apalpadelas até ver se acerta nalguma coisa. No caso da Marina Mota, não acertou numa. A medium diz que há imenso ruído na comunicação post-mortem, como nos telemóveis sob escuta.
Mas enquanto houver gente viva, dinheiro para pagar-lhe e audiência para o circo, os "mortos" darão a vida a Depois da Vida. Bem hajam os mortos que sintonizam nas frequências da TVI. Pudera que contassem também para as audiências.
Texto retirado do "Jornal o Público" de 16/ 04/ 2010
Por: Eduardo Cintra Torres